quarta-feira, março 30, 2005

A UTOPIA


Fotografia de Valery Bareta

No momento presente em que vivemos em Portugal e de uma maneira geral no mundo da globalização, achei interessante lembrar um homem e a sua obra maior, A Utopia, que teve a coragem de criticar a sociedade em que viveu. Tomás More.
Estadista e humanista inglês, nasceu em Londres a 7 de Fevereiro de 1478. Estudou em Oxford e foi grande amigo de Erasmo de Roterdão, de quem o seu pensamento recebeu grande influência.
A acção do livro começa em Bruges, onde More é enviado pelo rei em missão diplomática. Aí começa a sua obra em forma de narração, utilizando para tal um personagem, que é apresentado por ele com o nome de Rafael Hitlodeu. É um navegador português, «Já no declinar da vida. O rosto queimado deste desconhecido, a longa barba, o amplo gibão que lhe caía à vontade, o seu ar e a sua atitude, tudo indicava nele o homem do mar». Rafael acompanhara Américo Vespúcio nas suas viagens e chegara numa delas a um país desconhecido dos Europeus.
A conversa incide então sobre a situação política e social da Inglaterra. O português inteiramente ao corrente do que se passa, não deixa de reprová-la.
«A principal causa da miséria pública é o excessivo número de nobres ociosos que se sustentam do suor e do trabalho de outrem, e que mandam cultivar as suas terras, tirando a pele aos rendeiros para poderem aumentar as suas receitas. Não conhecem qualquer outra economia. Mas, pelo contrário, se se trata de comprar um prazer, são, então, pródigos a pontos de tocar as raias da loucura e caírem na mendicidade. O que não é menos funesto, ainda, é trazerem atrás de si um rebanho de criados preguiçosos, sem situação e incapazes de ganharem a vida.
Estes criados, quando caem doentes ou quando o amo morre, são postos na rua, pois preferem sustentá-los quando não fazem nada, do que quando estão doentes, e frequentemente acontece o herdeiro não estar em situação de poder manter a criadagem do pai
Eis pessoas condenadas a morrer de fome, se não têm coragem para roubar. Na verdade, terão eles outros recursos? Em busca de colocação gastam a saúde e o fato, e quando já estão pálidos de doença e cobertos de farrapos, os nobres têm-lhes horror e desdenham dos seus serviços

Rafael descreve estes bandos de mendigos vagabundos como um dos piores flagelos da sociedade do tempo. E a situação social é catastrófica ainda por outras razões, entre elas a criação exclusiva de carneiros causa grandes prejuízos à agricultura.
E o português continua, «a estas causas de miséria vêm ainda juntar-se o luxo e as suas loucas despesas. Criados, operários, camponeses, qualquer que seja a classe da sociedade, ostentam um fantástico luxo, tanto no vestir como na alimentação. Terei, também, que me referir aos lugares de prostituição, aos vergonhosos covis de embriaguez e de prazer, a essas infames casas de jogo.
Arranquem da vossa ilha essas pestes públicas, esses germes de crime e de miséria. Obriguem, por decreto, os nobres demolidores a reconstruir as herdades e os burgos que destruíram, ou então que cedam as terras aos que queiram reconstruir sobre as ruínas deixadas. Ponham um freio ao avaro egoísmo dos ricos; arranquem-lhes o direito de tudo quererem para si, de tudo monopolizarem. Que entre vós se não tornem a encontrar ociosos. Dêem à agricultura um grande desenvolvimento; criem fábricas de lanifícios e outros ramos de indústria, onde possam ocupar, utilmente, toda essa multidão de homens, cuja miséria até hoje só criou ladrões, vagabundos, ou então lacaios, o que é pouco mais ou menos a mesma coisa
».Tudo isto evidente para nós hoje, na sua época era correr um grande risco dizer ou escrever tais coisas. Neste trecho da A Utopia aqui descrito, Tomás More, insurge-se contra as próprias bases da sociedade inglesa e todo o sistema político europeu. Rejeita a nova doutrina económica desenvolvida em meados do século XIV e o impiedoso egoísmo do sistema político imposto no decorrer dos séculos transatos e sistematizado em O Príncipe, de Maquiavel, aparecido alguns anos antes da A Utopia.
More, influenciado pelos ideais da República de Platão e cristãos do direito e da justiça no governo dos Estados, faz a sua proposta para um Estado mais justo, mais humano e fraterno na segunda parte da A Utopia.
Então Rafael Hitlodeu passa a falar de um Estado ideal, imaginário, numa ilha longínqua, que descobriu no decorrer das suas viagens e onde esteve cinco anos. A Utopia, o «país de nenhum lugar».
«Na Utopia, as leis são em muito pequeno número; a administração espalha as suas benesses por todas as classes de cidadãos. O mérito recebe a sua recompensa, e ao mesmo tempo a riqueza nacional está tão equitativamente repartida, que todos desfrutam com fartura das comodidades da vida».Na ilha há muito belas cidades, todas com administração colegial e leis comuns. Os habitantes distinguem-se por uma humanidade e um requinte extraordinários e vivem felizes, graças às leis inteligentes e moderadas que regulam a sua existência. São governados por um príncipe, mas vela-se para que ele se não transforme em tirano. Todos os cidadãos, homens e mulheres, devem-se consagrar a um ou outro trabalho, mas não podem trabalhar mais de sei horas diárias. Os lazeres são consagrados a estudos úteis e formativos e a distracções. Rafael insiste no facto de na ilha maravilhosa não existirem cabarés ou outros locais consagrados a prazeres menos próprios. À população nada falta, pois os ricos repartem com os pobres. «A ilha é, portanto, uma só grande família, um só lar.» E, prossegue Rafael, para compreender as condições sociais em Utopia, é sobretudo preciso não esquecer que ali se não conhece o dinheiro.
Os habitantes de Utopia atribuem uma grande importância à filosofia e procuram continuamente o que poderia fazer a humanidade mais feliz. É por isso que o rei Utopo decretou a total liberdade religiosa em todo o país.
Esta passagem é profundamente influenciada pela religiosidade e grande espírito humanista de Tomás More.
Existe ainda em Utopia algo que Rafael deseja muito particularmente chamar a atenção: a opinião dos habitantes no que diz respeito à guerra. «Contrariamente a quase todos os outros povos, acham que não há nada mais baixo e desonroso que a guerra
Para Tomás More, A Utopia devia mostrar como poderia ser uma sociedade, se os homens se dignassem usar a sua inteligência e agissem «com senso e tacto». A obra exalta a paz, a compreensão e o amor ao próximo e a eliminação completa do egoísmo individual. Condena a intolerância e o desejo desenfreado de poderio e de dinheiro, essas forças que ameaçam a sociedade. Pretende levar os homens àquilo que a sua evolução histórica produziu de mais nobre: a civilização inteiramente voltada para o homem.
Este programa sublime, foi reduzido a pedaços no holocausto da luta entre a Reforma e a Contra-Reforma. O próprio More subiu ao cadafalso em 1535 por ter recusado trair os seus ideais pacíficos e libertadores aquando do seu conflito com Henrique VIII.

quinta-feira, março 24, 2005

Lembranças X

O piso era formado por um corredor a todo o comprimento do edifício, para o qual davam as portas das enfermarias, de um lado, e do outro janelas para o exterior. Subindo as escadas a primeira porta, em frente, era a do gabinete do sargento. Voltando para a direita haviam três enfermarias, e para a esquerda outras três, depois das quais a havia uma porta de vai e vem, que separava as enfermarias dos praças das duas seguintes reservadas aos sargentos. Na zona dos sargentos havia ainda do mesmo lado mais uma enfermaria pequena vazia ao fundo do corredor, e do lado oposto a esta uma pequena sala de apoio.
As escadas que levavam ao primeiro piso, terminavam num grande patamar. Antes de entrar para o corredor das enfermarias, tínhamos do lado esquerdo, a copa e o refeitório para os doentes que se podiam levantar, e do lado direito, a sala de tratamentos e o dispensário.
Feita a apresentação das instalações, o sargento levou-nos até à enfermaria numero 1, que ficava na ala esquerda, e abrindo a porta disse-me, esta é para ti, a numero 4, que ficava do outro lado, é para o Galrinho, após o que se foi embora para o seu gabinete.
Entrei na enfermaria e senti um calafrio na espinha ao ver o aspecto dos doentes. Uma sensação de vazio de conhecimento invadiu-me como se eu não tivesse aprendido nada e estivesse na mais perfeita ignorância da função. Um nervoso de impotência perante todo aquele cenário fazia-me tremer as pernas e engasgou-me a garganta ao dar os bons dias. Tudo era ligaduras, gessos, balões de soro, membros em tracção etc. Após uma olhadela pela sala, e ter trocado dois dedos de conversa com alguns dos doentes, saí e regressei ao gabinete, onde já se encontravam o Galrinho e o Victor.
Então pá como é a tua enfermaria? Perguntei ao Galrinho. Porra, o nosso primeiro tem de nos ajudar, ou não sei como vai ser, respondeu olhando para o sargento. Com um sorriso, este retorquiu. Já disse para me tratarem só por António, quanto ao resto claro que vou ajudar. Agora, continuou, vão ter com o cabo Alberto para vos dar as batas e as alpercatas, olhem que não quero ninguém de sapatos no serviço, é contra o regulamento. Depois vão à secretaria ver a escala de serviço e apareçam depois de almoço. Para além do serviço na enfermaria, ainda tínhamos fazer, o que se chamava no hospital, o plantão nocturno ao serviço.
Depois do almoço, quando regressamos ao gabinete, o sargento já não estava, tinha saído e só voltava no dia seguinte. Segundo nos informaram era o que acontecia praticamente todos os dias.
Mas que grande merda, berrou o Galrinho, se acontece alguma coisa da parte da tarde como é que a gente vai fazer? Grande lateiro. Claro que a situação não era tão grave assim, pois ainda haviam os quatro enfermeiros já com experiência e em caso de necessidade podia-se sempre recorrer ao médico de serviço.
Passamos o resto da tarde à conversara no gabinete com os outros enfermeiros mais antigos. Realmente somos uns gajos com muita sorte, opinou o Victor, em não estarmos no lugar deles. É tudo malta da nossa idade e o estado desgraçado em que estão e em que alguns vão ficar. Viram aquele que não tem os dois braços?, parece que foi quando estava a desmontar uma mina. Já pensaram bem o que é ficar sem os braços aos vinte anos? Sem um braço agente ainda se arranja, mas sem os dois, valha me Deus. Tem vinte anos, que vai ser da vida dele? O Victor estava mesmo emocionado.
Olha que há casos bem piores do que o dele, informou um dos enfermeiros mais antigos. Isto agora não está nada mau, mas deve estar para chegar mais uma leva deles, e então é que vocês vão ver o que é bom. Desde que começaram as operações no norte de Angola que isto não para. No princípio, a maior parte dos feridos eram provenientes de desastre de viação, mas agora começam a aparecer, e muitos, aquilo que chamamos de feridos em combate. Alguns vêm em tal estado, só visto. Segundo eles dizem, os terroristas estão a usar armas cada vez mais modernas.
Sim o tempo da catana já acabou, interveio o Galrinho. Em Fevereiro de 1961, quando a UPA atacou e massacrou brancos e negros às centenas no Norte de Angola, vinham só armados de catanas e pedrados para terem coragem.
E não eram angolanos à procura da autodeterminação, é preciso dizer, acrescentou o Victor, mas sim grupos que vinham do exterior apoiados pela União Soviética, Estados Unidos, China, Inglaterra e até Brasil. Cheirava-lhes a petróleo. Se não tivessem descoberto o petróleo em Angola estou convencido que não estaríamos em guerra.
E já lá vão dois anos, entrei na conversa, que esta merda existe e não há meio de se resolver. Não estamos perdendo terreno, mas a guerra está a ficar difícil. Não estávamos preparados para nenhuma guerra quanto mais para guerra de guerrilha que é a pior de toda. As emboscadas são o que mais atinge a nossa malta, em guerra aberta os terroristas não tinham chance, a aviação dava cabo deles.
Resolver é o tanas, vocês chegaram agora e não sabem nada do que se passa, afirmou o outro enfermeiro com experiência. Já começámos a recebemos feridos da Guiné.
Da Guiné? interrogou o Galrinho. Mas na Guiné não havia guerra.
Isso é o que eles dizem, ou melhor não dizem nada, para o povo não saber, mas desde o dia 23 de Janeiro deste ano, ou seja há cinco meses, que começou lá, com um ataque do PAIGC a um quartel. Respondeu o mesmo enfermeiro experiente.
Fez-se um pequeno silêncio que aproveitei para ver as horas. Malta são cinco horas, vamos embora que amanhã há mais. E fomos para casa.

quarta-feira, março 16, 2005

Tristão e Isolda


Desde 1170 são numerosas as obras literárias que fazem eco da lenda céltica de Tristão, personagem lendário da Bretanha, modelo medieval do cavaleiro enamorado. A história de Tristão é marcada por tragédias, dizia-se que ele nunca foi visto sorrindo, a começar por seu nascimento, onde seu pai é morto em batalha, perdendo o reino de Lionesse, e sua mãe morre no parto. Graças a estas tragédias, ele recebe o nome de Tristão.
Entre as versões mais célebres figuram a de Thomas da Bretanha e a de Gottfried de Estrasburgo, que daria origem ao drama musical em três actos, com libreto em verso e música de Richard Wagner.
No pequeno porto irlandês de Wexford, onde se encontrava Tristão e seus companheiros ancorados, um cruel dragão aterrorizava os habitantes. O rei Gormond prometera dar a mão de sua filha Isolda em casamento ao valente cavaleiro que matasse o dragão.
Tristão aceitou o desafio e enfrentou o dragão numa perigosa luta, finda a qual, após a morte da besta, cortou-lhe a língua, para servir de prova perante o rei, guardando-a no seu sapato. Ao regressar, porém, desfaleceu, pois a língua do dragão possuía um poderoso veneno.
Ao passar pelo local da luta, o mordomo-mor do rei Gormond deparou-se com o cadáver do monstro e aproveitou-se da situação. Cortou-lhe a cabeça e, após apresentá-la ao rei, reclamou a mão de Isolda, que cortejava havia muito tempo.
Isolda que o não desejava como marido, desconfiou da sua coragem. Com sua mãe foi ao local do combate e ali encontraram Tristão desfalecido.
Levaram-no para o palácio e, durante vários dias, cuidaram dos seus ferimentos. Isolda ao limpar a espada de Tristão, verificou que faltava um pedaço. Comparando a lâmina com um pedaço de metal que, retirado do crânio de seu tio Morholt, fora guardado por ela como relíquia, verificou que as partes se encaixavam perfeitamente. Tristão era sem dúvida o procurado assassino de seu tio, mas, como só ele poderia provar a impostura do mordomo-mor, Isolda seguindo os conselhos da mãe resolveu poupá-lo.
Ao saber que Tristão a pedia em casamento em nome do seu tio, o rei Marcos da Cornualha, Isolda mergulhou em profunda melancolia, mas decidiu acompanhá-lo. A rainha, que desejava a felicidade da filha ao lado do rei Marcos, confiou a uma criada uma poção mágica que os noivos deveriam beber juntos na noite de núpcias. Essa bebida, preparada à base de ervas, uniria o casal por um sentimento tão profundo que eles não poderiam sobreviver sequer a uma semana de separação.
No decorrer da viagem, porém, a criada por engano serviu a poção mágica a Tristão e Isolda. Daí em diante, nada mais poderia separá-los.
Tristão não ousou revelar a verdade ao tio, e o casamento de Isolda com o rei Marcos foi celebrado. Mas todos os dias Tristão encontrava-se com Isolda secretamente, num jardim, junto ao palácio ou mesmo nos aposentos da rainha. Apesar de todas as precauções, os barões descobriram os encontros e denunciaram a Marcos. Surpreendidos pelo marido traído, os dois amantes foram condenados sem julgamento a serem queimados vivos.
Ao longo do caminho que levava à fogueira, comprimia-se uma multidão entristecida. Ao passar diante de uma capela construída na beira de uma falésia, Tristão desejou rezar. Como os seus guardas haviam desamarrado as mãos, conseguiu escapar e precipitou-se no vazio, mas salvou-se ao agarrar-se a uma pedra que sobressaía no paredão. Em seguida, pulou para a praia e fugiu. Mais adiante, o seu escudeiro Gorneval esperava-o com cavalo e armas. Em seguida libertou Isolda.
Durante três anos, viveram escondidos na floresta. Tristão fez um arco, com o qual nunca perdia a presa, e Gorneval construiu uma cabana de galhos e troncos.
Um dia, o rei Marcos descobriu o esconderijo e encontrou Tristão e Isdolda adormecidos, abrigados no simples casebre. Sentiu pena daqueles corpos tão magros, que os andrajos mal cobriam. Anunciou que estava disposto a receber Isolda de volta na corte, mas Tristão deveria partir para longe.
A poção mágica já tinha perdido o efeito fazia muito tempo, mas Tristão e Isolda continuavam amando-se. Desolado teve de embarcar para a Armórica.
Na pequena Bretanha, Tristão colocou-se ao serviço do rei Hoel, tornando-se amigo de seu filho, o cavaleiro Kaherdin. Com o passar do tempo, Tristão pensou que poderia esquecer Isolda casando-se com outra mulher. Desposou a irmã de Kaherdin, que também se chamava Isolda e era conhecida como a Isolda das Brancas Mãos. Mas a lembrança da loura Isolda jamais abandonou Tristão, o que não passou despercebido aos olhos da esposa.
Quando está preste a morrer de uma infecção causada por uma seta envenenada, manda uma mensagem, implorando que Isolda da Irlanda viesse até ele e ordena que no retorno do barco, deveria estender velas brancas se a trouxessem e negras se ela não viesse.
Quando as velas brancas são vistas horizonte, a sua esposa Isolda das Brancas Mãos, louca de ciúmes, enganou Tristão, que já se encontrava enfraquecido demais para enxergar, dizendo que eram negras. Angustiado Tristão morre. Ao chegar, Isolda, a loura, viu o corpo de Tristão estendido na praia, não resiste e cai morta junto ao amado.
Os dois foram enterrados lado a lado. O rei Marcos ordenou que se plantasse uma roseira selvagem no túmulo de Isolda e uma videira no de Tristão. Ao crescer, as duas plantas enrolaram-se uma na outra.
Há quem diga, pelas semelhanças, que a lenda céltica do Rei Artur e da sua Távora Redonda se baseia na lenda de Tristão e Isolda.

quinta-feira, março 10, 2005

O soldado Milhões



Hoje venho-vos apresentar, para quem não conhecer, um dos nossos maiores heróis dos tempos modernos, cuja fama e respeitabilidade, passaram além fronteiras. Refiro-me a Aníbal Augusto Milhais, mais conhecido pelo “Soldado Milhões”.
Natural de Valongo, concelho de Murça, em Trás dos Montes, filho de simples e honestos agricultores, assentou praça em Bragança sendo incorporado no regimento de infantaria 9, onde mostrou ser exímio especialista no manejo de metralhadoras.
A Primeira Grande Guerra Mundial, foi sem dúvida o conflito mais sangrento da memória humana, onde ocorreram as maiores carnificinas da história militar europeia. Guerra de transição entre os conceitos militares que presidiram às guerras anteriores, e os que viriam a ter lugar mais tarde, apesar de dispor já de uma grande evolução tecnológica, tacticamente mostrou ser um autêntico desastre, não passando de um impasse permanente em que para além da destruição mútua, a evolução para a vitória ou para a derrota praticamente não existia.
Portugal ainda não havia muito tempo, tinha sido vexado ao perder as terras do Mapa Cor de Rosa para os Ingleses em África. Com medo de vir a perder o que restava das suas colónias africanas, viu como única saída, a sua entrada na guerra ao lado dos Aliados, evitando assim ser vítima futura da partilha dos vencedores.
É este o motivo que nos levou a entrar na guerra, não sendo o nosso pedido de adesão inicialmente aceite pelos Ingleses, acabou por o ser, por influência dos Franceses que convenceram aqueles de que poderíamos ser utilizados como carne para canhão. Carne para canhão significava estar na primeira linha a sofrer os primeiros embates provenientes dos ataques alemães. Uma espécie de tropa de segunda para ser sacrificada.
A guerra primava por uma táctica estática, onde os soldados entrincheirados, aguardavam ordens para assaltar as trincheiras inimigas, não muito distantes, ou defender as suas dos ataques do inimigo. Estes ataques de trincheira a trincheira não obtinham resultados práticos, para além de um amontoado de corpos, na terra de ninguém entre as trincheiras, dos soldados mortos nas operações.
A vida na trincheira era do mais desconfortável que possa imaginar. A paredes meias com ratos, pulgas e outras espécies de parasitas, os soldados tinham de suportar Invernos muito frios, com chuvas copiosas que as transformavam em infernais lamaceiros. A comida além de escassa era de má qualidade, e os cuidados médicos quase inexistentes. A inacção temperada com a saudade, levava muitas vezes ao abaixamento do moral.
No dia 9 de Abril de 1918, por considerar a posição insustentável, o comando britânico ordenou a retirada da segunda divisão do contingente português, comandada pelo general Gomes da Costa. Naquela madrugada, ainda ensonados e trôpegos, mal haviam iniciado o cumprimento da ordem de retirada, deu-se a hecatombe.
Em poucas horas, milhares de soldados desmoralizados eram dizimados pela artilharia alemã, que entretanto tinha iniciado uma ofensiva sob o comando do general Ludendorff. Sob o fogo alemão, os homens caiam mortos na lama. Era a célebre Batalha de La Lys, em que no sector português composto por 7.500 homens mais de mil perderam a vida.
Após o fogo de barragem alemão, deu-se o assalto propriamente dito pelas tropas do Kaiser, em maior número, com o moral elevado, apostadas em conseguir uma vitória. Quando as coisas estavam a parecer impossíveis para a retirada das nossas tropas em face do ataque imparável alemão, eis que um homem, bem posicionado, munido de uma metralhadora pesa Lwis, sozinho no seu nincho, conseguia só por si próprio fazer frente à tropa de assalto alemã, dizimando-a, impedindo que esta progredisse no terreno, dando assim tempo ao nosso contingente concluir a retirada.
Após a retirada, continuou sozinho, segundo rezam os relatos, por mais cinco dias, vigiando qualquer ataque inimigo.
Só quando o seu comande chegou ao pé dele, é que largou a sua “menina”, como chamava à metralhadora, com que tinha disparado em todas as direcções, para dar cobertura à retirada dos companheiros que caiam como tordos. O comandante olhou para ele e disse “ Tens o nome de Milhais, mas vales por milhões”, nome porque ficaria conhecido, não só no contingente português mas nos estrangeiros especialmente no inglês.
A sua bravura foi reconhecida não só pelo exército português, como pelos aliados, recebendo as mais altas condecorações.

sábado, março 05, 2005

ANAXÁGORAS

Quando hoje nos empenhamos na busca da explicação científica para as nossas origens e existência, é um injustiça esquecermos os antigos pensadores gregos, que há cerca de 2500 anos, se preocuparam em encontrar uma lógica para a existência das coisas.
De entre tantos, hoje destaco Anaxágoras, paradigma perfeito do pensamento antigo, que mais se aproximou da compreensão do universo.
O que proponho é uma viagem ao pensamento de Anaxágoras, revisitando as suas teorias e concepções a respeito da origem e fim das coisas.
Nascido em Clazómens, na Costa da Ásia Menor, 500 a.C., aos vinte anos foi estudar para Atenas. Influenciado pelas doutrinas da escola jónica e, especialmente, pela de Anaxímenes, procurava a causa de todas as coisas num ser supremo, mais exactamente, numa inteligência primeira, o Nous, que move todas as coisas.
Aos 40 anos de idade abriu em Atenas uma escola filosófica e teve como discípulos, entre outros, Péricles e Sócrates. Foi ele quem introduziu na Ática a filosofia e a ciência jónias.
No seu tratado Da Natureza expôs que o Sol era uma enorme bola de fogo e que a Lua era da mesma natureza da Terra. A Lua recebia a luz do Sol, o que permitia dar uma primeira explicação coerente dos eclipses.
Ele provou que a teria do Big Bang, pertença criação do universo, não é tão moderna como se pode pensar. A este respeito a sua filosofia dizia o seguinte:
«Todas as coisas estavam juntas, ilimitadas em número e pequenez; pois o pequeno era ilimitado. E enquanto todas elas estavam juntas, nenhuma delas podia ser reconhecida devido à sua pequenez. Pois o ar e o éter prevaleciam sobre todas as coisas, ambos ilimitados. Pois no conjunto de todas as coisas, estas são as maiores, tanto em quantidade como em grandeza».E continua.
«Antes, contudo, de se separarem, quando todas ainda estavam juntas, nenhuma cor se podia distinguir, nem uma única. Após terem sido estas coisas separadas, devemos reconhecer que todas as coisas juntas não são menos nem mais, e que todas as coisas são sempre iguais.»
Agora o que Anaxágoras dizia do tempo após separação das coisas que estavam juntas no período inicial do Universo:
«Estas coisas giram e são separadas pela força e pela velocidade. E a força produz a velocidade. A sua velocidade, contudo, não se compara à velocidade de nenhuma das coisas que existem agora entre os homens, pois é muito mais rápida. Também sobre toda a revolução tem o Espírito poder, foi ele quem deu o impulso a esta revolução. E esta revolução moveu-se em um pequeno começo; agora estende-se mais e estender-se-á ainda mais.»
O mais extraordinário em Anaxágoras, era além de declarar que no início todas as coisas estavam juntas, era saber que o Universo está em aceleração e expansão constantes.
Sustentava que só a experiência sensorial põe o ser humano em contacto com uma realidade cambiante, cuja constituição última ele pretende encontrar. O que significa homem encontrar-se limitado ao mundo dos sentidos.
Afirmava que só o Ser é e o Não-ser não é, porque ao Ser, enquanto totalidade, não se pode acrescentar nem tirar nada.
Anaxágoras considerava o nascimento e a morte como a união ou a separação dos elementos. Acreditava numa infinidade de elementos, a que dava o nome de sementes.
As sementes de Anaxágoras são o que nós chamaríamos hoje de átomos, o que perfila o atomismo de Leucipo e Demócrito, uma intuição para o conhecimento atómico das coisas.
Nada pode chegar a ser aquilo que não é ou deixar de ser o que é: «como poderia chegar a ser carne aquilo que não é carne ou pêlo aquilo que não é pêlo?»
Por toda aparte se encontram corpúsculos, elementos infinitamente pequenos, invisíveis à vista desarmada. O corpo humano, por exemplo, com os seus ossos, sua carne, seus músculos e sua pele, é elaborado a partir dos alimentos que absorve. Isso é possível porque todos os elementos do corpo se encontram, em quantidade reduzida, nos alimentos. «Tudo existe em tudo»
O que ele quer dizer é que o homem não pode ser separado do todo em que existe, por fazer parte integrante desse todo.
O papel que em Empédocles era desempenhado pelo amor e pelo ódio aparece atribuído por Anaxágoras a uma potência a que ele chama Nous (inteligência), a matéria mais subtil, causa o movimento sem se misturar com os elementos, e, deste modo, governa-os. O Nous, «o perfeito, o absolutamente puro», agita a massa elementar num movimento perpétuo e desordenado que “desassocia” as diferentes coisas.
Os filósofos gregos tinham como base do seu pensamento a desassociação a qualquer concepção com cunho religioso ou divino. A noção de Deus, como nós a entendemos, para eles não existia, mas sim a explicação racional e lógica dos factos.
É extraordinário como estes homens, sem qualquer espécie de instrumentos de experimentação e comprovação, usando somente o pensamento puro, conseguiram intuir as bases da ciência moderna.
Acusado de ateísmo, foi condenado à morte e teve de fugir para Lâmpsaco, onde morreu em 428 a.C.